O PACTO DA BRANQUITUDE - CIDA BENTO
(comentários: Luana Tolentino - da Literafro - o portal da literatura afro-brasileira)
Pacto da branquitude: um convite à construção de um Brasil alicerçado na equidade racial
Luana Tolentino
Eleita pela revista The Economist como uma das vozes mais influentes do mundo no que diz respeito à promoção da diversidade, em Pacto da branquitude, Maria Aparecida Bento apresenta a questão racial no Brasil sob uma ótica ainda pouco discutida no país: as alianças construídas pelos brancos que são determinantes para a perpetuação do racismo e dos abismos que ele provoca.
(nota da editora)
Neste livro poderoso, Cida Bento ― eleita em 2015 pela The Economist uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade ― denuncia e questiona a universalidade da branquitude e suas consequências nocivas para qualquer alteração substantiva na hierarquia das relações sociais.
Diante de dezenas de recusas em processos seletivos, Cida Bento identificou um padrão: por mais qualificada que fosse, ela nunca era a escolhida para as vagas. O mesmo ocorria com seus irmãos, que, como ela, também tinham ensino superior completo. Por outro lado, pessoas brancas com currículos equivalentes ― quando não inferiores ― eram contratadas.
Em suas pesquisas de mestrado e doutorado, a autora se dedicou a investigar esse modelo, que se repetia nas mais diversas esferas corporativas, e a desmistificar a falácia do discurso meritocrático. O que encontrou foi um acordo não verbalizado de autopreservação, que atende a interesses de determinados grupos e perpetua o poder de pessoas brancas. A esse fenômeno, Cida Bento deu o nome de “pacto narcísico da branquitude”.
Neste livro, a cofundadora do Centro de Estudos das Relações
de Trabalho e Desigualdades (Ceert) reúne sua experiência para apresentar
evidências desse acordo tácito e nos convidar a deslocar nosso olhar para
aqueles que, a fim de se manter no centro, impelem todos os outros à margem.
Lançada em 2022 pela editora Companhia das Letras, a obra resulta de sua tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP), em 2002. Mais do que isso, os apontamentos feitos ao longo de 129 páginas partem da experiência de Cida Bento ter sido preterida em processos seletivos, ao concorrer a vagas de emprego, mesmo possuindo as atribuições exigidas pelas empresas.
As portas reiteradamente fechadas, que segundo Cida Bento causavam “dor, dúvida em relação à competência profissional e insegurança em relação ao futuro profissional” (p. 11), fizeram com que a fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) abandonasse a docência e ingressasse no curso de Psicologia, com intuito de compreender melhor os mecanismos que dificultavam ou impediam a presença de corpos negros nos postos mais prestigiados de órgãos públicos e de empresas privadas do país.
Associada a estudos e pesquisas, a vivência como “recrutadora, chefe de seleção e executiva de RH”, permitiu à Cida Bento sentenciar a homogeneidade de gênero e raça que marca os postos de alto comando no Brasil, o que, mesmo com as denúncias do movimento social negro, permanece imperceptível para boa parte dos brasileiros. A autora ressalta: “É fundamental observar também que nos altos postos de empresas, universidades, de poder público, enfim, em todas as esferas sociais, temos, ao que parece, uma cota não explicitada de 100% para brancos. Esses lugares de alta liderança são quase que exclusivamente masculinos e brancos”. (p. 10).
É a partir dessas observações que Cida Bento formula o conceito que dá nome ao livro. A filha de seu João e dona Ruth defende que, embora não haja um acordo assinado e registrado em cartório, silenciosamente foi estabelecido um “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa a manter seus privilégios” (p. 18), de modo a assegurar também o confinamento de negros e negras nas partes mais baixas da pirâmide social, em permanente condição de subalternidade.
Para elucidar esse modus operandi das relações raciais no Brasil, Cida Bento retorna ao nosso passado escravocrata, que é latente quando se observam dados relativos ao desemprego, aos rendimentos e às funções ocupadas majoritariamente por esse segmento social: o serviço doméstico por parte das mulheres negras, e os setores agrícolas e da construção civil por parte dos homens. A esses grupos têm sido destinadas atividades que exigem pouca escolaridade e trabalhos braçais.
Ao discutir essas questões, a autora lembra que há um silêncio rotundo do lugar dos brancos nesse contexto, principais herdeiros e beneficiários da maneira violenta e cruel com a qual foi erguida a sociedade brasileira. Cida Bento aponta:
Descendentes de escravocratas e descendentes de escravizados lidam com as heranças acumuladas em histórias de muita dor e violência, que se refletem na vida concreta e simbólica das gerações contemporâneas. Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas. (p. 23)
Em Pacto da
branquitude, é importante destacar também o fato de a autora estabelecer um
diálogo com o cenário político recente do Brasil e episódios de violência
contra a população negra que marcaram o país para explicar a perversidade da
aliança tecida por brancos para perpetuação da ordem vigente. É importante observar
ainda que, embora se trate de um tema desenvolvido no âmbito acadêmico,
seguindo a tradição da antropóloga Lélia Gonzalez, Cida Bento organizou e
redigiu o livro de forma que pessoas dos mais variados espaços e segmentos
sociais pudessem compreender sua obra.
Pacto da branquitude emerge como um chamado para se (re)pensar as relações entre brancos e negros no Brasil, reconhecendoque elas estão profundamente marcadas pela opressão racista. De acordo com Cida Bento, esse movimento é imprescindível para a construção de um novo pacto civilizatório, alicerçado pelos ideais de justiça, equidade racial e democracia.
Referência
BENTO, Cida. Pacto
da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
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* Luana
Tolentino é professora, graduada em História, Mestre em Educação pela UFOP,
doutoranda em Educação pela UFMG e colunista da revista CartaCapital.
Autora de Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e
inclusão em sala de aula (2018), é também coorganizadora dos volumes
críticos Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria
de Jesus (2016) e Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora
(2018).