No trem

No trem

Publicado em 19/12/2019 pela Editora Boitempo

Por Flávio Aguiar.

No longínquo ano de 1966, no mês de julho, fiz uma viagem até o sul do Chile, na companhia dos amigos a quem este poema é dedicado. Fomos aos trambolhões, de ônibus, trem, barco, cortando o duro inverno andino até Puerto Varas, de onde reatravessamos a cordilheira para San Carlos de Bariloche e dali regressamos a Buenos Aires, depois Montevidéu e Porto Alegre, nosso ponto de partida. Houve de tudo, como sói acontecer numa aventura dessas.

Num dos episódios mais dramáticos da viagem, ficamos ilhados durante três dias e três noites no alto dos Andes, entre Las Cuevas (Argentina, 3.600 m de altitude) e Portillo (Chile, altitude 2.800 m), devido a avalanches que atravancaram a linha de trem. A locomotiva era uma maria-fumaça, pois naquela altitude, naquele tempo, naquela temperatura (20 graus negativos), as máquinas a diesel não funcionavam e ainda não havia algum movido a eletricidade.

Acabamos aportando na estação de um hotel de luxo, onde podíamos comer durante o dia. Dormíamos no trem. Havia cerca de cem passageiros, distribuídos em três vagões. Devido ao frio, dormíamos todos num único vagão, empilhados e amassados uns aos outros para nos aquecermos. Ali desfrutei da experiência que inspirou este poema, que faz parte de meu futuro livro Viagens eróticas, erráticas, heréticas.

Os passageiros mais abonados comiam no restaurante do hotel, caríssimo. Os remediados comiam na cozinha, com os funcionários, graças a um arranjo irregular feito com estes. E os mais pobres comiam o que podiam encontrar. Entre estes havia um casal que originalmente não era pobre. Tinham ido passar férias em Mendoza, na Argentina. E ali o marido perdeu nos cassinos tudo o que tinham levado. Tinham a passagem de volta para Santiago, comprada de antemão. Não tinham dinheiro sequer para pagar por alguma comida. Chegamos a salvar algo que conseguíamos na cozinha para oferecer a eles. Enfim… como diz o poema, “cada um com seu cada qual”.

* * *

No trem

Primeira versão publicada como “Categorias gramaticais”, em Colar de vidro e outros poemas (Porto Alegre, IEL, Corag, 2002).

A Edgar Magalhães e Eduardo Aydos, companheiros de viagem.

No trem

Come-se bem.

Cada um

Com seu cada qual.


Na primeira classe

A fome é adjetivo,

Picante entrada

Às regras da etiqueta.

Fome fina como prataria,

Motivo de gorjeta

No vagão restaurante,

Onde o olhar

Crepita pelo cálice,

Os dedos asseados

Passeiam pelos talheres.

Estes passeiam pelos bocados

Onde brilham as especiarias

De seus preparos delicados

Na boca que demonstra

Um certo ar de enfado,

Além de estar ocupada

Com falas mais importantes.


Na segunda classe

A fome é advérbio,

Circunstância de tempo e lugar,

Adequada, como à boa educação apraza,

Para se oferecer ao vizinho

O pacote fornido que vem de casa,

Comido com a resignação

De quem economiza no pão.

“Enfim, é a vida”,

Pensa o olhar remediado,

Distraído na paisagem,

Enquanto a boca se avia.

A fome, aqui,

É motivo de filosofia.


Na terceira classe

A fome é substantivo

E do tipo concreto.

Tem peso, e a resistência

Da mais dura forjaria.

Seu horizonte discreto

É o fundo da marmita:

Por paisagem, a mão.

Aqui o olhar

Vai do prato ao chão,

E dali ao prato vizinho.

Na terceira, olhar

Também ajuda a mastigar.

Ainda há aqueles

Que perderam o trem.

Despossuídos, desassistidos,

Têm a sensação

De não ser ninguém.

Ficam na estacão

Colhendo migalhas na mão.


Assim vai a fome

Com seu cada qual,

Viajando em todos os trilhos,

Enquanto o maquinista,

Sem parar o maquinismo,

Come a ração

Que lhe reserva a ferrovia.

E se exclama, reclamando,

Que a vida alheia

É água fresca

E sombra todo dia.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisado

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