EBENEZER – O MENSAGEIRO DO CONGRESSO

EBENEZER – O MENSAGEIRO DO CONGRESSO

EBENEZER – O MENSAGEIRO DO CONGRESSO

um conto de Emerson Mina

         Era um entra e sai de gente. Repórteres e assessores andando atrás de autoridades que por lá circulam todos os dias. Quase todos os dias, porque segundas e sextas o corre-corre vai lá para o aeroporto.... lugar que Ebenezer não conhecia.

         Vestido no seu uniforme de brim azul claro, com calças e gravata marinho, nosso herói era praticamente um lince...ou melhor, um calango de tanta agilidade e rapidez. Bastava um estalar de dedos das autoridades e já estava ele em posição de sentido, todo respeitoso e pronto para o serviço.

         Alguns assessores também tentavam lhe dar ordens, mas a experiência o ensinou a diferenciar merecedores de respeito daqueles mandões chatos, sem cargo nem importância....só de gravata e arrogância nos bolsos. A esses o mensageiro fingia surdez. Funcionava e a malcriação nem era necessária.

         Ebenezer também aprendeu que pegava bem fazer o serviço sem perguntas e depois de cumprida a missão dar um sinal ou aviso discreto para o ordenança. Isso lhe garantia boas gorjetas e agrados. Já tinha levado tapa nas costas de autoridades cujo queixo jamais tocara o peito, tamanha altivez do sujeito. Ebenezer tinha sorte.

         Zulmira, sua mulher, cuidava como ninguém do seu uniforme e do seu barbear. Vivia pregando os botões do colarinho que teimavam em soltar, pressionados pelo pescoço curto e grosso de Ebenezer. Barba mal feita era outro deslize que não pisava porta afora. O homem saia sempre encomendado no zelo e no orgulho de Zulmira.

         Num dia como tantos uma nova CPI começou a ser falada. Era autoridade dando entrevistas pra repórteres... assessor cochichando com deputado.... senador discursando pras câmeras... e nesse tiroteio de CPI pra lá e pra cá um tiro pegou no ouvido de Ebenezer.

         Quando isso acontecia era preciso aumentar a ração de farinha, porque a demanda iria esquentar! Na última vez que rolou CPI Ebenezer pulou tanto e tão depressa que arrumou um desajeito de anca só curado em mão de doutor.

         Não deu tempo de se arrumar. Como chuva de verão aquela CPI veio e molhou todo mundo. Abraçou o expediente do congresso. Das portas fechadas pra fora ficavam assessores nervosos, repórteres famintos .....e Ebenezer.

         O garçom em passo acelerado entrava carregado de água e café e saia com bandeja vazia e olhar misterioso. Ebenezer, de mão pra trás, esperava os escândalos serem paridos para a correria começar. E dessa vez foram histórias de malas suspeitas....e um tal de sigilo, coitado, foi quebrado.

Por causa disso Ebenezer teve que ir a bancos e repartições e empresas de telefonia. A ordem era buscar toneladas de papéis e processos.         De uma hora pra outra Ebenezer ficou famoso. Era só pegar um quilo de documentos e já tinha repórter querendo filmar, fotografar e mexer nos papéis.

         Com boca fechada e cara feia o mensageiro guardava tudo numa sala com sete chaves. Um tal de presidente da CPI passava e até as plantas baixavam os olhos. E um caminhão de autoridades passou a entrar e sair do congresso pela porta dos fundos.

         Era tudo por causa das malas: campanha eleitoral com mala; viagem com mala; visita com mala; reunião por causa de mala e além de gente tossindo no Congresso o que se ouvia era: roubo, desvio, fraude, corrupção ...e mais mala.

         Pra sentar no banquinho da CPI começaram a chamar autoridades, depois assessores, secretárias, motoristas e até engraxates. Quem viu mala iria falar...por bem ou por mal!

         No refeitório Ebenezer abriu a boca para morder seu sanduiche e o homem da televisão falou olhando pra ele: “ninguém escapa da CPI. O povo espera punição rigorosa para todos os culpados. Cadeia para todos os envolvidos!”

         O pão voltou para a mesa e a boca ficou aberta. O que era apenas um simples “nervoso” no estômago virou pânico no olhar. Não havia dúvidas, Ebenezer iria ser chamado.

         Sua história tinha uns vinte dias. Ele foi discreto como sempre quando levou e deixou aquela mala num prédio meio vazio. Mas sempre tem alguém que vê e lembra....sempre tem um desocupado que fica se metendo na vida dos outros!

         Quem será que delatou? Seria o próprio deputado que ordenou o serviço? Aliás, desde o fatídico dia estava sumido. Será que já estaria preso? E o que a Zulmira iria pensar? ....Que desgraça!.... Era o fim de uma carreira engomada de bons serviços.

         Ebenezer, pálido, saiu andando lentamente do congresso. Abandonou seu posto e foi pra rua.... nem olhava as pessoas de tanta vergonha. Quando seu nome e sua cara saíssem na televisão ele seria acusado...talvez até espancado!

 Acelerou o passo sem rumo. Em frente a rodoviária a saudade de sua terra natal virou faca no peito.... chegou a ouvir a voz de sua mãe, a única pessoa no mundo que iria acreditar na sua inocência.... Zulmira? Ia despejar todos os botões que pregou na sua cara e voltaria para o Ceará.

         Injustiça! Gritou por dentro. Como ele saberia que a mala era pecaminosa? Logo ele que nunca questionou uma ordem, nunca suspeitou das autoridades!... Não tinha jeito. Pegou na mala é culpado!.... Pensou em coisas horríveis que a tal mala poderia ter causado....mas ele não sabia! Ebenezer estava no inferno!

         Nessa montanha russa de culpa e inocência, seguiu o mensageiro no carrinho da vergonha....e já que estava tudo perdido pensou ele ter direito a saber do seu pecado....e ofegante partiu em direção ao apartamento no qual largou a mala.

         Suou... se arrependeu.... esbravejou.... e continuou. Quando viu o prédio começou a tremer. Era numa rua calma e com pouco movimento. Ainda cheirava a tinta nova. O porteiro olhou Ebenezer mas nada falou quando viu seu uniforme e o símbolo do congresso. “Ele sabe e está envolvido”, pensou o mensageiro. “Será que vamos dividir a mesma cela?”

         Na porta do elevador começou a suar frio. Podia ser que os culpados estivessem escondidos no apartamento e, assustados, enchesses de bala o curioso que batesse à porta... Que diferença faria isso? Culpado merece mais é bala mesmo!

         O dedo tremeu quando apertou o 5º andar. A viagem do elevador teve o tempo de Ebenezer repassar toda sua vida no Ceará e sua glória uniformizada no congresso. A porta se abriu e ele voltou do transe. Deu três passos e parou em frente ao apartamento. Esfregou as mãos, olhou a pequena janela do hall e sentiu um fio de vento.... na prisão deveria ser assim também, pensou. Segurou a testa... respirou metade e engoliu seco. Olhou para o alto pedindo ajuda ao céu e viu o batente da porta. Lembrou que a chave ficara ali, segundo ordem do deputado. Será? Ergueu a mão....e sentiu o frio do metal. Foi em frente.

         Quando abriu a porta do apartamento um calafrio desceu na espinha curta de Ebenezer. O quadro era o mesmo daquele dia: uma sala vazia e uma mala gorda e culpada parada ao lado do sofá, do jeito que havia deixado.

         Raciocinou: “vou abrir a desgraçada. Se tiver dinheiro ou outra porcaria pago parte da minha culpa na correria! ....Levo a miserável de volta nas costas e jogo no colo do presidente da CPI...e dou a mão para as algemas! Zulmira vai entender!

         Partiu.... O barulho do zíper está gravado na memória de Ebenezer assim como suas gargalhadas nas paredes do apartamento. Só tinha roupa suja!.... Era meia, cueca e camisa mal dobrada. Coisa de deputado! .... Graças a Deus! Roupa!

Ebenezer era inocente! A mala era inocente, assim como deviam ser toda as 27 malas que ele havia levado nos últimos dois anos. “É só roupa suja, gente!!!”

 

Emerson Mina

agosto/2005


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